29.12.08

morte em miami de um irlandês imigrado


Dos livros lidos e adornados a bombordo, aparto,
ora um, que trata de orquídeas e begónias,
depois outro, que ensina tudo sobre o ágio.


Alastram manchas no tecto branco e azul do quarto
onde, proscrito, exorcizo insónias:
É a Morte que mija no estuque o seu presságio.


Depois, irreversível, a osmose principia,
até que a pele estala e dentro do espelho da cómoda barata,
trazida da velha Irlanda e conservada na memória,
a alma se refracta
e aceita diluir-se para sempre na nova trajectória.

interestelar



SOM LUZ MATÉRIA CORPO


do panorama

Algo há que espreita por uma janela. 
São gotas ferrugem.
Observam o pairar do pó metálico que exalo. 

Nas veias corre alumínio.
Na pele uma delicada camada de alumina.
SOU PENA DE PÁSSARO
Transmuto a rocha em líquido suspenso.

Algo há que respira sobre a janela.
Névoas acobreadas formam-se e deformam-se com a inalação e exalação.
O vidro reclama a minha posse.
SOU ESTRUTURA TRANSPARÊNCIA

Algo há que se vê através de mim.
Toda a minha existência.
ALUMINA MALEABILIDADE FRAGILIDADE.

exercício para poema de percussão


Pensar a Poesia é como estrangulá-la
para cobardemente a violar depois:

Poetas, por quem sois,
desisti do mistério e da cabala
e renunciai, por uma vez, às soluções extremas
de improvisar asas em cavalos
e, ao mesmo tempo, inventar gargalos
que dificultam o jorro natural dos poemas.

27.12.08

poema excêntrico

 
Nas espirais das galáxias e na das conchas
dos univalves, me deslumbro e viajo,
de asas tronchas
e nu de qualquer trajo,
tragicamente centrífugo e solar.

E só irei parar
quando estiver bem dentro
do único ponto da tangente
que me garanta atingir directamente
o anticentro.

quando os gelos querem ser cauda de cometa

 
Comemoremos com sangue e júbilo esse dia
em que fomos expulsos
de um ventre onde, inventando o prazer, o sol procria
por interposto ser;
e nos deixa depois deambulando, avulsos
e de asas atrofiadas, através
da maior dimensão que o cosmos possa ter.

Comigo, foi como se caísse,
com toda a poesia do mundo atada aos pés,
de um colo maternal, todo meiguice,
para o mais gelado e inabitável fiorde
da minha mente,
onde o sonho se gera, cria e sente,
sem que o silêncio das estrelas nos acorde.

do ciclo da água

Não necessito mais do espaço por descobrir porque existe apenas o meu lugar, simulacro do globo inteiro. Esse lugar é uma sinfonia aquática barroca.

Raios ultravioletas desinfectam a água circular em que lavo o corpo. A espuma dos químicos que se esvai pelo ralo abaixo irá servir para alguém mais pobre que eu a dez mil quilómetros de distância.

Mas não me importo porque estou só.

A água que bebo fragmentada à milionésima parte, regressa dessa viagem embebida em plástico brilhante e multicolorido e podia servir para tomar mais um banho. 

Mas não vale a pena porque lá fora caem grossas gotas ácidas do céu.

Por isso espero por trás da vidraça semi líquida enquanto trinco uma maçã produzida por duas crianças de dez anos e os pesticidas embutidos nos dedos que colhem a fruta apenas revelam o sabor da mesma água.

Mas não interessa porque preciso apenas de manter os rituais funcionais, para me sentir infinitesimamente menos só, menos gota de orvalho deslizando folha abaixo, na direcção do desconhecido.

um nó no lenço


Amortalhadas, cada uma em seu próprio nome,
jazem algures em mim as coisas – tudo, afinal,
o que com meus nervos tentaculares abranjo e caço
para enganar a fome
essencial
que sem remédio passo.

( É a preciosa escória
do meu ser. )

Daí o nó que há muito dei no lenço da memória,
para me lembrar disso ao falecer.

26.12.08

dos nós e da regulação




Botões e cabos. É talvez uma parte da nossa estória pessoal. Vivemos ligados e em regulação sempre. Detestamos talvez cabos eléctricos atravessados na nossa visão. Deixamos enredar-nos neles. E não os conseguimos desenlear. Os nós modernos dos pescadores, que acompanhando a nossa urbanidade são nós sem organização.

Botões ligados, botões desligados. Palavras soltas ou orgulhos contidos em arrependimento. Desliga aí o botão da censura se faz favor. Ora aumenta lá a intensidade da tua produção. Chaplin via parafusos em todo o lado, como numa linha de montagem eterna que é a nossa vida.

Eu se fizesse uma revisão dos tempos modernos, substítuia os parafusos por botões e cabos. Assim tem sido a minha vida nestes últimos dias.

22.12.08

da alumina



Uma fina camada, pele, de óxido de alumínio protege o corpo da corrosão ferrugem. Daqui parti em busca de muito mais significados. Nasceu um corpo, som, palavra, substância, ALUMINA.

Mais detalhes em SUBTERMINAL.

20.12.08

do deslizar do lápis de cera através do papel


ao Vicente por me mostrar de novo o mundo


Quase me esquecia como é bom agarrar o lápis de cera, e deixá-lo fluir através do papel. As cores berrantes, os dedos entranhados de cera. Aquele cheiro único. A Luminosidade.

acrescento motivado pelo encontro inusitado entre um desenho a cera e "Alumina"

SOM LUZ MATÉRIA CORPO
Radiação directa e radiação difusa

Voo na tempestade solar
Os meus átomos provocam a reacção em cadeia nuclear 

HIDROGÉNIO HÉLIO OXIGÉNIO CARBONO FERRO NÉON NITROGÉNIO SILÍCIO MAGNÉSIO ENXOFRE

Estou para lá da fotosfera
Pressão e calor não me afectam mais
AINDA SOU ALUMINA

dos dias convencionados



Hoje, dia convencionado, celebro. Libertação, descoberta, crescimento, desenvolvimento. Alegria, em tudo o que me faz e preenche. Hoje, dia convencionado, choro. Faltam-me esses francos olhos azuis a sorrirem amor imensurável. Hoje, dia convencionado, respiro átomos, um a um, como se todos fossem diferentes. Da realidade Esta.

19.12.08

dos infrassons

Excerpto de "Alumina" peça musical em concepção

Este é o meu bater ouvido através do teu corpo MÃE. 
Sou sonar, sou ecografia, onda reflectida nas paredes do teu ventre MÃE. 
Sou picareta apontada ao centro da TERRA.

Revolve-se o solo, a rocha, o líquido.
O mistério da escuridão desnuda-se à luz do teu frontal.
Aqui não há estalactites nem estalagmites.
Apenas o tilintar do teu bafo nas jazidas de metal subliminar. 

Sou teu MÃE.
Dúctil na chama fustigada pelo martelo.
Sou teu MÃE.

das palavras surreais

da relevância das palavras como fio condutor da minha vida
a 2 de Janeiro de 2001

As cidades suspensas nas nuvens deixaram de ser alcançáveis 
Para que as palavras reclamem o seu direito primordial 

As cidades suspensas perderam-se nas nuvens da realidade
Para que o sonho imbuído da cacofonia fonética impere

O amor passou a ser um objecto de deslumbre
Onde a carnificina dos inocentes não tem lugar
O oásis deixou de estar nas bocas do mundo
Para que as palavras concretizem estados alterados de inconsciência 

Essas palavras que não são mais do que uma unha cravada nas minhas costas
Essas palavras que não são mais do que falsas esperanças
Essas palavras que não são mais do que letras escolhidas ao acaso para tentar racionalizar a loucura animal 

Essas palavras - ontem
Que saudades tenho dessas palavras
Palavras quadradas ou circulares que me levavam pelos campos semeados em flor
Sobrevoando girafas azuis, tubarões puxando charruas e homens empunhando granadas poéticas 

Essas palavras - hoje
Que arrepio sinto quando lentamente passo pelos meus lábios gretados os meus dedos rugosos com o intuito de apagar o som dessas palavras que não consigo impedir que saiam
Palavras perfumadas ou anódinas num mundo cor de rosa onde mais vale um pássaro na mão do que dois a sonhar 

Essas palavras - amanhã
Que futuro terão no meu corpo se me negam as visões que tive quando eram minúsculas na subcutânea pele dos meus dedos
Que futuro terão
Essas palavras amargas no sabor mas doces na forma
Essas palavras fractais que ora correm ora morrem no meu sufoco para te contar o universo inteiro
 
Essas palavras que espero
Não me habitem onde quer que o meu pensamento se ilumine com a tua presença

18.12.08

das palavras sussurradas


Música "La Vie d'Artiste" de Léo Ferré

Esperas tranquila na cama. Essa cama onde te encontras que está tão fria. Como naquele outono em que esperei por ti e não vieste.


Inquieto nesta sala ampla relembro as palavras que sussurraste. Palavras tão directas e espontâneas, como espontâneo e directo
foi regressares a essa cama onde agora esperas.

Esse olhar submisso. 

E aqui estamos no momento exacto da decisão, perturbado respiro fundo e deixo espairecer um último som, trespassado pelas palavras que traçaram este destino. 

Estou-me marimbando

E a provocação da cama, essa cama que mantém o teu corpo quente e espera pelo meu corpo frio. Nesse estado letárgico dou por nós, pela última vez gentilmente um no outro como se nada fosse.

ainda do desassossego

repto ao post "do desassossego" de Paulo Bernardino Ribeiro

envolta a vida em amores inabitáveis. nexos desconexos. convencionados marginalizados. imaginados platonificados. envolta a vida em contradição. querer não querer, saber ou sentir. saber em contrapé. sentir em contramão. perder o que nunca se teve. ganhar o que nunca se quis. desassossego antimetátese, almas em união.

17.12.08

inverno recanto

Praça de S. Paulo, Lisboa (2008). APS

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhuF1Ej6GTkxPX1aiRurjQWHO8z75Vby4kCtC7JGdSOAxc8FGPCQ7vCy8QPwP21SiRGwCWehneq7ZbHdVgz0VkWRQ3hZj3a5dFZsLoeaGci1kB7AUK0nd8Ty7Smp3J_vgkB7LgEorwGomM/s1600-h/5-Praça+de+S.+Paulo(APS)+001.jpg

Imóvel, uma garrafa acompanha-o vazia na pedra de descanso patriarcal. Perdem-se os olhos no volteio das folhas que caem já tardias. Desolada tarde de Inverno. Passa uma mulher enfiada no seu casaco remendado, distrai-lhe o olhar desprovido de poder telescópico. Fixa na mesma direcção, cabeça ausente de movimento. Apenas o seu casaco agita na brisa fria. A garrafa vazia confirma-se no toque dos lábios secos. Indiferentes, dois homens juntam-se no labirinto das cartas jogadas em metálicas mesas de rua. Miséria aposta bagos de arroz perdidos do prato de cachupa pobre. Gozam os pombos, comem os olhos, estômago não sente, no imutável inverno recanto.

dancer

körper. sasha waltz.

http://www.sashawaltz.de/a03.php?w=&ID=5&t=2

movimentos desenham braços na sombra

da tua sombra


desloca-se ar em ínfima camada

envolve pescoços


espicaçam sentidos inebriados, suave ritmado

odor

gotícula meticulosamente formada na superfície cutânea

arrepiada


cadeira alumia na central escuridão

acolhe posição


mimificada

paralisada


perna desconexo esbracejar

fractais momentos emanando calor do interior sentido

esfusiantes traços incorpóreos

estilhaçando átomos atraídos pelo burburinho


calam o som


segue o movimento


16.12.08

(em)carne

Barcelona 3 (Institut de Cultura) 2003. Spencer Tunick

http://www.spencertunick.com/artwork.html

em 
carne 
viva   

ponho 
tiro retiro 
corto 
retalho componho   

misturo   

açougue humano, 
a melhor selecção.   

selecciono   

carnes 
vivas 
mortas   

decompostas   

em 
formação 
em 
carne     

viva 
rasgo agora 
coração propulsão   

silvo cavalgante montado   

capaz, 
flutua 
imerso na serenidade 
do vazio   

galáctico 
observador 
de um espaço-tempo próprio   

jorra sangue, 
em carne viva.

15.12.08

das segundas oportunidades

A oportunidade de viver outra vez um mundo exótico, um corpo estranho.

Pensamentos são expelidos violentos, reais. De olhar penetrante subtrais da bolsa um cigarro e pedes-me lume. O teu toque gela o entusiasmo. Os minutos sobrepõem-se aos segundos, a desilusão sobrepõe-se à expectativa e a conversa deriva ferida de morte.

Proferes suaves insultos para não ferir susceptibilidades. Interessas-te pelos detalhes da minha vida. Imponderável. Estou noutra, espero impaciente o cerrar dos lábios.

Insistes em querer a minha presença , o pé que precede a mão, a mão que dá lugar à boca. Forças o beijo, intimidado tento resistir ao charme possessivo. Farrapo concedo.

13.12.08

da ausência


‘Encostou a mão ao corrimão de pedra e desceu os dois lances de escadas até atingir o átrio do prédio. Eram as últimas horas do dia e Rafael saía de casa como quem sai de manhã para o trabalho. Mas Rafael não ia trabalhar. O trabalho e ele há muito que se ignoravam mutuamente.
Rafael que em tempos tinha sido apontado pela crítica especializada como um dos mais promissores compositores da sua geração, via agora o trabalho, e a música era agora um trabalho, como um fardo demasiado pesado para a sua cabeça poder suportar.
Pelas ruas à noite a sua silhueta surgia como a de um louco, como a de um pobre diabo. O seu passo era apressado, como o de quem não quer perder um transporte ou como o de quem não quer chegar atrasado a um qualquer encontro. E ao tomar consciência, num rasgo de lucidez, de que o seu transporte há muito o perdera e que os encontros a horas certas já não faziam parte da sua vida sem regras, Rafael abrandava o passo e quase parava, caminhando vagarosamente. Era assim Rafael andando pela cidade. Porém naquela noite sabia onde ia e manteve constante o passo.
Saiu do prédio desceu a rua em direcção à Praça da Figueira e desapareceu da superfície da terra.
Àquela hora as estações do metro são o lado errado. O lado errante. A multidão das horas de ponta, recolheu. Apenas os loucos, os errantes, os solitários conhecem a desolação dos túneis nas entranhas da cidade. Apenas estes conhecem o outro lado.
A estação da Baixa-Chiado estava muda, uma pessoa esperava o metro, uma mulher, à sua frente do outro lado da linha dois homens. O sinfonia do ruído do metro substituiu o silêncio da estação.

Os dois homens do outro lado continuaram imóveis. A mulher entrou. Atrás dela uma sombra de homem entrou também.

Os olhos revirados e o pescoço erguido, erecto com uma cabeça cambaleante. Era essa a figura de Rafael. Os ruídos excessivos das cidades, das máquinas, do progresso, alteravam-no. E quem visse Rafael, agora uma sombra de homem, arrastar o corpo pelas carruagens do metro dançando como um esqueleto, abanando o corpo lentamente veria somente um espectro, a imagem fantástica de uma pessoa ausente do mundo.'

da inquietude na expectativa

Agora que cheguei e estou tão perto de te rever, metódico procuro algo que apazigue a sofreguidão, do teu chamamento. Agora que o desassossego se instala e a perspectiva aumenta.

Eu que fui abandonado no meio de uma rua em hora de ponta e te perdi de vista no turbilhão de gentes.

Crava-se a inquietação só de vislumbrar o teu doce olhar. Agora que deslizas pelas escadas rolantes afagada pelos encontrões dos transeuntes, as minhas entranhas revoltam-se.

9.12.08

dos utensílios mundanos

Este é o objecto que está todos os dias à nossa espera para servir o seu propósito


Podem ouvir o som "Aluminium Sounds" no separador SONORIDADES
AVISO: Ouvir som com auscultadores para apreciar convenientemente

Às vezes a beleza dos utensílios mundanos nem sequer chega a ser apreciada uma única vez, nem ao de leve. Por isso, na realidade outra interpretação pode ser dada visual ou sonora, e com ou sem esforço, uma paisagem gelada aparece, um pedaço do museu gugenheim, o restolhar de chuva numa superfície de metal. 

do desassossego


'Frente a frente íamos os dois, e o olhar nervoso daquele homem cruzava o meu. Seduzia-me com a sua aflição. Inquietava-me. Olhava-me, depois desviava o olhar, tremia. Estava nervoso, muito nervoso.
E eu deixo-me envolver facilmente, olhava-o receosa, mas não podia deixar fugir o olhar para qualquer outro sítio. E os olhos daquele homem cruzavam os meus. Se me apertasse e me beijasse eu seria impotente perante o seu suplício. Acho mesmo que se me pedisse para o beijar, eu me levantaria e o beijava, por compaixão. Mas foi ele a levantar-se, não para me beijar, como naquele instante pensei que o fizesse, pois os seus nervos eram nervos de amor. E eu ainda acredito em paixões nascidas de um olhar numa carruagem de comboio.
Dirigiu-se para a janela guiado pelo sonambulismo do seu corpo. O homem estava hipnotizado e eu também! Só de o olhar! Colou a face ao vidro e assim ficou durante algum tempo, não sei quanto, estava hipnotizada pela sua figura. Não tenho presente que mais alguém estivesse naquele compartimento, pelo menos não recordo mais ninguém. Éramos apenas os dois. E um silêncio entre nós. Não trocámos uma só palavra. Nem sei se estaríamos realmente ali. Agora só recordo o matraquear dos carris. O irritante zumbido iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii e o tu-tu tu-tu-tu, aquela sinfonia do desespero. Como eu estava desesperada! Que quadro desolador! Eu olhava aquela sombra de homem agarrada às vidraças. O homem olhava, o quê, não sei, nem com que olhos. Ele estava de costas, mas em algum momento se virou, pois fixei no meu espírito aquele rosto crispado de olhos revirados e a cabeça cambaleante…os olhos revirados com se de um morto se tratasse! A sombra ergueu os braços e num esforço levantou a vidraça. Iiiiiiiiiiiiiiii tu-tu-tu!
Se estava frio este quadro, mais frio ficou agora. Os meus ossos gelaram. O meu corpo tinha arrepios, a minha alma tinha arrepios, toda eu era um arrepio. Um arrepio é isso aquele espectro à minha frente era, um arrepio!
Iiiiiiiiiiiiiiii tu-tu-tu iiiiiiiiiiiii tu-tu-tu !
Duas estátuas de jardim abandonadas à chuva no Inverno. Assim éramos nós, imóveis. Eu, de pé agarrada à maçaneta da porta do compartimento espreitando para fora, olhando-o. Ele, apoiado com os braços e o peito na parte inferior da vidraça. As abas do seu casaco levantadas e as pernas quase como que quebradas, davam a impressão daquele homem, não ser um homem. Era uma sombra. Colado à vidraça era uma lapa. Abraçado à janela era uma lesma.
O tempo era agora imenso. Não sei quanto tempo durou esta visão, quanto tempo passou desde que o comboio deixou a estação. Perdi a noção. Fiquei hipnotizada. Sim, fiquei hipnotizada por aquele homem.
A certa altura o comboio abrandou, os travões chiaram, parecia que iríamos parar, mas não, a sombra acercou-se da janela por inteiro, a velocidade aumentou novamente. A cabeça, os braços e o tronco iam já do lado de fora. Iiiiiiiiiiiiiiii tu-tu-tu iiiiiii tu-tu tu-tu iiiiiiiiiiiii tu-tu-tu ! Foi a última visão que tive daquele homem.'

7.12.08

da realidade outra virtual


Como a falta de ingestão de líquidos e sólido durante tempo indeterminado ainda provoca falência

Jogadores compulsivos de jogos de computador, ligados 24 horas por dia, 7 dias por semana, deixam-se embalar por píxeis em movimento. Esquecem o corpo apenas se lembram das suas mãos e cérebros. Esta é uma das facetas da nossa realidade, um outro lado virtual. 

6.12.08

da realidade monetária

Subcutânea à realidade uma endoderme de circuitos de cobre instalou-se.
Agora mostra sinais de colapso.


Depois dos drive-ins, para ir ao cinema, ou para comprar hamburgueres, há agora campos de refugiados para a classe média apanhada no turbilhão da crise financeira na Califórnia. Depois de perderem as casas e trocarem os seus SUVs e Limusinas vivem nos seus automóveis em 2ª mão estacionados. 

5.12.08

da dualidade


'inferior-superior, móvel-imóvel, clássico-moderno'
fim de tarde ou início de noite?

4.12.08

dos opostos que se tocam parte II

Calmamente na casa do desejo, entras. Sentes-te ansioso, mas dissimulas a paixão por detrás de um ramo de flores. O desejo ela está sentada à janela, olhando o grande olho cósmico nocturno. Embaraçado balbucias palavras ininteligiveis durante o jantar, embaraçado tocas as suas mãos frias durante a sessão de cinema, embaraçado dizes que a amas durante a despedida.

Dás por ti surpreso, a despir-lhe a blusa, os dedos rugosos percorrem o ventre fazendo cócegas ligeiras, dilatando os segundos em minutos, dilatando as coxas contra as coxas. É meia-noite, os sinos repicam e o desejo ela fecha os olhos e deixa-te entrar. Seiva mistura-se com perfume com esperma com salvação.

Madrugada num paraíso urbano qualquer, encontras uma cama mas não consegues adormecer.

3.12.08

dos opostos que se tocam parte I

Caminhas frenético mas encontras o lugar. Uma bola de espelhos onde sobressais na noite. Uma música possessiva percorre o teu corpo bombeando som, inspiração-expiração. 

Violento abanas a cabeça, acompanhado pelo odor do álcool e com espasmos o teu corpo supera todas as leis da física. És tragado por uma força invisível, ao tocar corpos húmidos. Bebes mais um golo, a garganta seca assim o exige. Na imensidão do espaço flutuas, acompanhado de lobos famintos. Estás esfomeado, as mãos ásperas sedentas de sexo assim o exigem.

O desejo ela encontra-se encostada a ti, sôfrego tiras-lhe a roupa, as mãos fortes apertam com força as costas, comprimindo os minutos em segundos, comprimindo o peito contra o peito, suor mistura-se com saliva com esperma com liberdade.

Madrugada num paraíso urbano qualquer, encontras uma cama e adormeces profundamente.

2.12.08

para E. aumentado à lupa de um certo olhar automático

Pilhado descaradamente de para E. publicado por Maria João Rodrigues

A serena levitação ecoa profunda como lágrimas contidas no talvez adeus. Uma visita que deixei por fazer.

Ainda
húmido devolvo ao ar nitroglicerina que implode no teu olhar. Cristalino imagino que chova dentro em breve, mas não, foi apenas o frio do meu descontentamento na tua chama por acender.

A chuva, o orvalho e o vapor reluzem, vaporizam-se singelas e misteriosas 
chamas azuis lambendo cuidadosamente o nosso abraço em (re)união. Uma fusão extemporânea no frenesim da celebração. Nesse tal sítio onde frenéticos esprememos o sonho numa única gota de suor. Lá, nesse tal sítio onde fingimos mostrar que não somos o que somos mas não nos conseguimos enganar. Rastejamos nesse sítio das almas em busca de um perfume desconhecido, embevecidos pela nossa imagem reflectida no fogo.

E somos nós, somos vocês, somos Eu, somos Tu e Ele e Ela. Nesse tal sítio trincamos os lábios e são de fogo as gotas cristalinas de cristal.



serena

levitação

 

lágrimas talvez, ainda

 

húmido

devolve 

ar

 

imagino que chova dentro em breve

 

chuva orvalho vapor

luzem 


singelas

misteriosas

 

chamas

 

abraço (re)união fusão

 

celebração

 

lá no sítio das almas

1.12.08

da música nos meus olhos


D14 Fotografia de Man Ray

Antigamente a palavra subjugava o meu tempo, depois afoguei-a em imagens. Lentamente letras emergiam, primeiro timidamente, com um pequeno splash invertido, de seguida duas letras conjugadas um E e um U inventaram um ssssssssssssssspplash. Quando dei por mim num blurb de palavras formou-se a música que flutua na minha íris salpicando a pupila, cristalizando gotas nas pestanas. Vejo claramente para onde os sons me levam. As palavras e as imagens encontraram o seu propósito.

allfactum

deambulo pelas ruas (re)sentindo cheiros


atravessam-me lanças

 

inebriante tontura

desfalece

 

 déjà vu

 

nasalado éter

 

penso tocar-te

agonio-me

 

vagueio pelas ruas (re)sentindo cheiros

 

multidão engole-me entre sacos e caganças

 

colectiva 

insaciável


modernidade


sopro ouvido

 

penso cheirar-te

agonio-me

30.11.08

entre mentes



um copo me diz a distância da sanidade.

29.11.08

pião

Foto: http://www.flickr.com/photos/16895553@N07/2905073794/

Laivo, mudança   

rodopio em redor muda 

tempo muda 
entendimento 

muda mundo nascimento 
direcção rumo   

assimétricas almas amizades 
mutação   

acelerada   

densa   

ávida rodopio
embriagada

afirmo observo confiro


afirmo observo confiro
congelo os meus mísseis de longo alcance
e não te alcanço
retorno ao cativeiro que é viver sem ti
estabeleço um programa de negócios
negoceio um ensaio de sanções
sanciono as irresponsáveis autoridades
autorizo a abolição do governo
governo o nosso amor
com penas de flamingo
e outras aves de estuário
que é o teu corpo
feito das águas dos meus mergulhos

queria partir nas águas de um bando.
queria partir nas asas de um rio.

contigo crio um país sem mundo
uma terra em suspenso
composta de anos a teu lado
e dias raros

27.11.08

da infância



O zénite dissolve-se no caminho ascendente enquanto deambulo pela rua cheia de promessas. Crianças brincam ao acaso, como fiz também quando ao acaso ia deambulando cheio de energia, orientado apenas por olhos protectores.


O sabor da vida sem perspectiva. As loucuras cometidas no excesso da novidade, sem ironia nem malícia. O prazer de mentir, para preservar os pequenos minutos deliciosos. Viver inconsciente dos problemas mundanos mas mergulhado neles até ao pescoço. Viver assim no acaso premeditado como quem arrisca a vida permanentemente sem o saber, como um movimento subtil de quem apenas quer viver a vida inteira amparado por uma rede invisível.

26.11.08

uma certa nostalgia



Agora que os eventos se precipitam cada vez mais rápidos, nada como uma imagem de fim de verão para relembrar a intemporalidade. 

25.11.08

da celebração


Minha é vossa a alegria em comunhão, exposta com tal fragilidade que ligo as nossas mentes num abraço fraterno.

24.11.08

dos edifícios devolutos


23.11.08

apontamentos sobre a trilogia natureza homem metrópole

O Homem na condição de criador gerou o organismo perfeito para comportar a sua existência individual. O receptáculo acolhedor de tentáculos estendidos sobre a natureza

E o indomável frémito das ondas, o poderoso assobiar do vento e a delicadeza dos finos braços das árvores já não impera.

Chegou a hora da simplicidade cruel, do cimento geométrico, do caos estabelecido do tráfego e da sinfonia afónica da máquina com os seus nevoeiros fotoquímicos e relógios sincronizados ao milímetro.

Chegou a hora da Metrópole exibir orgulhosamente a supremacia, sobre o Homem e sobre a Natureza.

Indivíduos são agora uma amálgama de espaços aéreos, terrestres e aquáticos, organizados em células macroscópicas. O homem é apenas uma minúscula partícula, roda dentada. O pássaro é de metal e pesa toneladas. A árvore tem centenas de metros de altura, ergue-se orgulhosa, espelhada reflectindo luz quando o sol se apaga.

Chegou a hora do ajuste de contas.

A Natureza assim como o Homem estão agora moribundos esperando o golpe de misericórdia. Mas tal como a natureza na sua imperfeição gerou o Homem também a Metrópole cresceu ferida de morte. E este é o seu lamento. A sua dádiva.

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Este é o lamento
A batalha pela sobrevivência
Num mundo dividido entre o Homem e a Natureza
Perdido pelos dois em detrimento de uma nova era
A minha a da metrópole

da vida das árvores na cidade


21.11.08

como a recta pode afinal ser curva

Palavras alinhadas em resposta aos poemas "da irreversibilidade enquanto libertação" de Paulo Bernardino Ribeiro e "Tempo Preso" de Maria João Rodrigues

O tempo e o espaço 
O Homem e a Terra
Como corpos exógenos
Insinuam-se clarividentes e incisivos
A recta a destreza e a amplitude são também curva densidade e sombra 

...

Tudo
Em nós
Marca
Passagens
Obtusas através do TEMPO 

Exterminados e
Sobrepostos
Passeando
Através do subtil
Caminho
Obliteramos o ESPAÇO

Há um brilho
Ofuscante no universo
Mas
Esta noite
Memórias são únicas ao HOMEM 

Temos
Em nossas mãos
Rectas, planos e pontos
Redefinidas como curvas e superfícies
Apesar de serem sempre a mesma TERRA em que nos movemos 

...

O tempo e o espaço
O Homem e a Terra
Como corpos exógenos
Moldam-se inolvidavelmente à nossa imagem

da irreversibilidade enquanto libertação

'glosa assimétrica ao poema tempo preso de Maria João Rodrigues'
:
há na irreversibilidade do tempo
a boa vontade do criador

jamais a curva o cansaço e a densidade
mas a recta a destreza e a amplitude

sendo o tempo reversível
como ponteiros em marcha-à-ré
não eterno mas perecível sim por tal olvidável o tempo
seria então exíguo o espaço

e não poderia eu correr na amplitude do ar
aspirando os segundos do tempo um depois outro
jamais a curva a espiral a repetição mas o maravilhoso desconhecido
libertação

do rio com seus portos e amarras enquanto objecto poético


'pontão sobre o rio tejo em alcochete numa tarde de outono'