27.2.09

cidade nua

JARDIM REPOVOADO


Neste domingo sem Sol, em que vieste e choveu
inesperadamente sobre os pássaros e no violino do cego,
o jardim público, onde as crianças, há pouco, eram o mais importante,
surgiu-me decadente como um império nascido
da ambição de uns tantos,
do heroísmo ocasional de alguns
e da escravidão dos outros.
As cascas dos tremoços, cuspidas por bocas insuspeitas
e por outras prostituídas,
aumentavam o lixo metafísico das minhas recordações inventadas.
Sim, porque inventar recordações
é um honesto entretenimento dos deuses
e um trágico destino dos poetas
e de todos os que sonham aos domingos, quando há Sol,
e depois chegas tu, realidade absurda e tolerada,
e choves, sem nos molhares,
deixando-nos encharcados de pegajosa melancolia -
- esse humilhante lacre com que o tempo torna invioláveis
os segredos das coisas.

O lago, a estátua, a simetria estúpida dos canteiros;
as ruas de saibro cilindrado e de traçado tão diferente
das rotas dos astros;
essa gruta com falsas estalactites de cimento,
mais o polícia com que a moral adorna os parques públicos -
- tudo o que jaz no jardim e saiu de cabeças humanas,
deixando-as aliviadas e porventura felizes
( as cabeças respeitáveis dos senhores vereadores,
do senhor arquitecto paisagista,
do senhor escultor de bustos encomendados e, por isso, difíceis ) -
- tudo isso pretende agora instalar-se de qualquer jeito
na minha memória
( sem ter lugar marcado,
como num transporte colectivo já repleto ),
ante a minha obstinada, peremptória e vã recusa.

É meu desejo, porém, levar comigo,
para o depois de amanhã da véspera da minha morte apenas as coisas do parque que não sairam de cabeça nenhuma

( e caibam na minha ),
ordenadas embora como quesitos de um agravo sem alçada possível:

1º - As flores hermafroditas, e só essas,
porque as outras sabem bem o que é amar.

2º - Os peixes degredados no lago artificial,
essa estranha e inútil infra-estrutura das paisagens urbanas
incipientemente retocadas por mãos que se goraram no espanto.

3º - As árvores defraudadas na liberdade do seu fototropismo
por podas perversas.

4º - O cego, mas sem o violino,
uma vez que as cordas deste não podem substituir-lhe os nervos ópticos.

5º - Os namorados, tão inocentes afinal nas suas malícias telecomandadas.

6º - As crianças, que mais tarde darão conta de que alguém as abandonou,
à porta do Universo,
com um jogo de cueiros, sem quaisquer iniciais bordadas,
e sem chapa de identificação ao pescoço (falta esta que bem pode vir a ser suprida com a corda que hoje saltam ).

7º - A velha e miserável vendedora de tremoços,
que nunca ouviu falar de metafísica
( e não precisa disso para nada
porque ela própria a encarna,
quando o seu lutar pela vida não se parece com o dos bichos
e apenas resulta do seu consciente medo de morrer ).

Quem de direito dirá, depois, se é preciso autenticar estes quesitos
e reconhecerem-me a assinatura.

De qualquer modo, informo, desde já,
que tenho sinais abertos em vários cartórios oficiais:

Para lá da sarça, onde Deus se escondeu para falar a Moisés;
no magma, onde o Diabo sustenta o seu harém;
nas areias das praias solitárias
onde somente a erosão é a lasciva e venal testemunha do Tempo,
e na terceira circunvolução esquerda do meu cérebro.

24.2.09

alumina

Apresento-vos orgulhosamente a minha primeira composição musical, onde misturo paisagens electrónicas, alguns apontamentos de outros sons e a minha voz sobre os meus poemas, os quais tenho vindo a deixar pedaços espalhados por esta realidade outra.

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23.2.09

ecologia de cordel

ACIDENTE ECOLÓGICO

O poeta urbano caiu abaixo dum carvalho
onde fazia de pássaro.

Por mera coincidência,
caiu também a noite
em cuja escuridão
( roçando o falo hirto pelo abstracto das formas )
fica o poeta, angustiado, esperando a madrugada,
a fim de a amar e de fazer-lhe um filho.

Quando ela chega, porém, ofegante de cio,
com a luminosa flor dos lábios entreaberta
e o sexo em súplica,
já o poeta dorme, exaurido e impotente,
e o sémen apodrece sob as tílias do parque.

19.2.09

22.55.09

INSECTOS NUM CANDEEIRO EM NEW YORK

Inesperadamente, um corte
na carne da alma e a consequente hemorragia
que, por definição, nada mais há que a estanque
a não ser a morte
mais recôndita ou o torniquete do sol ao meio-dia.

Um substrato ianque
perpassa em tudo e tudo invade
desde a sombra mais secreta
à mais cristalina claridade

E o sexo transformado em fast food do poeta
deixa Withman, perdido em Nova Iorque,
no seu mais nocturno e escuro beco sem saída,
a construir um monumento ao fácil e imediato,
e deixando que a Liberdade enfim se enforque
num candeeiro apagado da Quinta Avenida.

Qualquer drama, porém, vai muito para além do derradeiro acto.

17.2.09

metamorfoses da morte


É viscoso o silêncio da palavra presa
na teia da memória que o cérebro urde, feito aranha,
nos recônditos vãos da sua própria imensidade,
para sugar da vítima indefesa
o que o poderia saciar e jamais ganha:
a substância intemporal da realidade.

Mascarada de triste,
a tudo isso a alma complacente assiste,
perversamente gerindo o insuperável desajuste
entre o eu e o objecto,
o capitel e o fuste,
a aranha e o insecto.

16.2.09

nas pétalas de um navio afundado

Nas pétalas de um navio afundado caem raios de fuligem que saem dos teus cabelos perfumados. Como quem dorme nas estrelas quietas. São dores intensas que espalhas pelos dedos do amor. 

Escapam homens maduros que adormecem no calor da chuva quando perdes uma carícia líquida. Vivem em bancos de jardim no paraíso, imobilizados nos teus lábios de rosa, quando livros são folheados ao acaso.

Constroem-se edifícios ao alto atravessados por uma ferida de morte, quando planeias fugir nua e caminhas pelo pó arqueológico dos sonhos. 

Ao longe uma tempestade veste o seu melhor fato, para te conhecer de perto, arranhada por espinhos que cedo demais se tornaram veludo.

15.2.09

do corpo da erva



relação insólita


Quando, enroscado na mente,
em noite de vigília,
o enigmático silêncio das estrelas adormece
como um gato feliz no colo do seu dono,
é absurdo pensar
na dimensão exacta do infinito,
mas não o é senti-la.

12.2.09

elogio da noite


A substância da Noite é de uma disponibilidade exemplar,
pois nela todas as geometrias são exactas,
fecundas todas as teorias,
e nenhum sonho é estéril.


Com ou sem os adereços habituais,
vestida de estrelas e de luar
ou simplesmente nua sob a chuva e ao vento,
a Noite é bela porque é nocturna e feminina,
independentemente da sombra que a habita
e do sexo que esconde nas fendas abissais dos oceanos
repartido em múltiplos libidos insaciáveis.


A Noite é bela se nocturno for
o desejo de quem a quer sentir inteira no seu corpo.

11.2.09

da periferia

Desfruta-se prazer inesperado
Maçã pescoço cianeto
Fechadura janela mulher 

Guerrilha interna
Espasmos morais 

A dádiva póstuma
Das relíquias
Televisão espectáculo falsificação 

Truncada
Pelas obras
Deus guerra poder 

Soçobra
Na rotina
Casa trabalho dormir 

Definitiva
A posição do indivíduo na periferia do poder

4.2.09

da realidade outra revisão


transpiro respiro inspiro pausa expiro
 

3.2.09

câmara ardente


Quando a euforia do festim culminou em libélulas,
deserdado e famélico, apesar das estrelas e do resto,
os deuses vieram farejar-me os dedos.

As palavras não foram então mais do que taças vazias
contendo apenas o nada da sua própria essência.

Em jarras de Alcobaça, compunha a Morte rosas descompostas,
num arranjo em que dedos de mulher foram o ornato decisivo.

Todos sentimos que lá fora estava a mais o luar;
ninguém o disse, porém, porque sabíamos
que somente o silêncio explica o perfume e as pétalas das flores.

Na verdade, quando tal ocorre ao pensamento,
bem pouco ou nada fica que dizer da música.

1.2.09

da observação




Do desconhecido, restam traços fragmentos. O oxigênio entope as guelras. A curiosidade pelo desconhecido mantém-se. 

Este é o meu observatório. Incontáveis horas a tentar decifrar o que são os pássaros chilreantes. As árvores que se vestem, despem e mudam de cor, como quem muda de humor lentamente, sem sobressaltos. As rochas nuas, angulosas, rugosas, imponentes sempre sem se mover, à chuva, ao sol, na neve. As nuvens altas sobrevoando brancas, cinzentas, esfumadas, densas e cerradas, opacas ou leves, num abraço estrangulante ou num toque suave.

Esta é a minha vida de observador, sou peixe homem, respiro água, bebo oxigênio, e mantenho-me curioso pelo inóspito da terra firme.

panfleto


Entre a imortalidade e o sexo
os deuses decidiram-se pela opção errada.

Exulto, pois, de alegria triunfante,
quando, das virilhas mornas de um parêntesis
e do emaranhado crespo das palavras,
irrompem, em ostensiva oblata,
os órgãos sexuais do poema.
palpitantes de um cio exacerbado
( até ao grau infinitesimal )
pelo perfume afrodisíaco das tílias
que o Estio macera nas entranhas líquidas da Noite.