25.3.09

da volatilidade

Amparo nos braços a violência do corpo embriagado nas tempestades eléctricas e na fúria desconexa de uma libertação impossível. Sinto a impotência, a solidão opressora desse corpo que se desfaz perante o meu olhar atento.

Assisto enclausurado à transformação da carne, ao percurso volátil dos músculos liquefeitos nos membros retorcidos. A pele transmuta-se em pedra fustigada pelo vento e pelo mar. Os polos de repulsão eléctrica pulsam aleatoriamente pelo rosto.

Só eu pareço aperceber-me, a plateia finge-se demasiado ocupada a preparar a sua defesa, contra o ataque das condições desumanas, contra o assalto da realidade visível e invisível.

Ainda agora me percorre um calafrio, um choque eléctrico, sempre que acordado cerro as pálpebras. Sempre que adormecido sucumbo aos sonhos em que sinto o toque suave dos teus dedos.

quatro registos de um verão mental

1

A LIBÉLULA

No charco da memória,
aí, onde se dá a metamorfose das palavras
e o sedimento dos dias se acumula,
aí - e só aí - a solidão é fértil
e o grito atinge as nebulosas.

O torpor da libélula,
que desova num junco,
torna menos efémero o fluir do tempo
e bem mais íntima e secreta a presença da água
na construção da metáfora
e nos olhos do poema.

2

A CARPA

A astuta carpa lentamente nada,
desenhando na vasa a geratriz do silêncio.
Ela antecipa-se às estrelas e prepara a Noite
para o sonoro e prolongado êxtase
da cópula das rãs.

Ejaculada no espaço sideral,
a Via-Láctea inunda de prazer
as mucosas genitais da intemporalidade,
enquanto a carpa astuta lentamente nada.



3

O SALGUEIRO - CHORÃO

Fototropismo, sim, mas quanto baste !
E tal como Jacob contra o Anjo
o salgueiro - chorão resiste ao sol do meio-dia
para que a água o deixe acariciar-lhe a cútis
e as aves vão beber na ponta dos seus dedos.


4

O FENO

É no odor do feno,
quando o sol arde, louco de ciúme,
que o nosso amor se assume
autêntico e pleno.

E, deste Estio quente,
só isso e o feno ficam no cérebro da gente.

arca encoirada

Deus fechou-me a Alma
e engoliu a chave:
Sou agora a ave
que cai com a calma,
( como no soneto
de Sá de Miranda ).

Lá poetar, poeto;
mas quem pode e manda
deixa, porventura,
que eu próprio me abra,
usando a loucura
como pé de cabra ?

Se Deus não defeca,
nem bolça o que ingere,
nada há que eu espere
desta inútil seca.

Ele há-de, porém,
descobrir no fim
que a chave que tem
não me abre a mim.

22.3.09

transfiguração errada

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Há uma fraude na paisagem: A luz que a ilumina é da véspera!

E o estafeta, dando por isso, pára de repente
e, ante o pasmo de córregos e árvores,
deixa cair da mão o testemunho inútil
e morre afogado em desespero.

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...........................................................

É então que surge um anjo resplandecente de luz
( daquela mesma luz que antes faltava à paisagem ),
e arrebata consigo o testemunho,
ainda quente,
não do chão mas da mão, agora fria,
do poeta que fica, inteiro mas bem morto,
a apodrecer nas cores do Arco da Aliança.

16.3.09

das alterações climáticas

Chegámos ao Verão, sem sequer passar pela Primavera.

Os ovos já ficam estrelados nos capôs dos automóveis.
Os pavões pavoneiam-se de chinelos.

Chegámos ao Verão, sem sequer passar pela Primavera.

E o frio, já ficou lá atrás.
Já não saímos de casa no barco insuflável.

Chegámos ao Verão, sem sequer passar pela Primavera.

11.3.09

do murmúrio

Há um murmúrio na solidão rochosa do homem quando um cigarro se acende cautelosamente.

Os dedos amarelados traem a imensidão rochosa desse peito. Esse peito aberto ao vento que inspira e transpira desconforto. Nos lábios gotejantes, diamantes disfarçam-se em nuvens de fumo e o beijo é substituído pela sofreguidão de um sorriso forçado.

Duvidas do amor por breves instantes e questionas a alienação por longos momentos.

Esse murmúrio rochoso que se instalou no homem de quem falo não se deve à solidão do amor, mas sim ao fumo do esquecimento. Deseja o esquecimento e evita a todo custo o amor toxicodepência. 

Por isso os lábios onde se formavam diamantes de ternura transformaram-se em duas pedras angulares inorgânicas. Sofregamente inalam e trituram monóxido.

6.3.09

encenação para a morte dum poeta



ENCENAÇÃO PARA A MORTE DUM POETA


Alguém desceu pela lingueta de pedra até ao rio,
transportando uma angústia feita corda
com uma das pontas amarrada ao paredão
e a outra à volta do pescoço.

Deitou-se depois no fundo dum caíque, abriu as pernas
e, encalhando os tornozelos nas forquilhas dos remos,
aí ficou com os pés agrilhoados.

Seguidamente pôs-se a roer, até ao ponto de ruptura,
a outra corda ( a que prendia o barco à margem ).


E, muito antes de a noite se esvaziar de todo
pelo esgoto aberto das pupilas dilatadas,
o rio, em maré viva e na vazante, fez o resto.

4.3.09

tragédia ao sol posto

SONHO REQUENTADO


Enquanto o Sol, ébrio de desejo, se desenvencilha da Luz,
hipotecando ao Tempo a sua própria parte de Infinito,
a Noite despe a túnica e fica em vão à espera
da prometida metamorfose eternamente adiada.

A única referência para o debuxo do poema é o coaxar das rãs
no charco onde, por reflexão, se precipitam os astros
e, por sadismo, se afogam os poetas.

As aves não dormem, simplesmente esperam,
tal como a Noite,
que o mesmo Sol as transforme em voos de pura claridade
e em gorjeios matinais eficazmente obscenos.

E porque as palavras não cabem no silêncio estelar,
renuncio à minha própria parte de Infinito
e concedo-lhes espaço nos meus versos.

da consciência

A paixão desdobra-se abrupta
Em tristeza e agonia
Quando a mão aprisiona a luz
E a euforia da conquista
Não mais se encontra no coração
Que sofre

2.3.09

das cinzas enquanto objecto poético

cicatrizes

CICATRIZ DECORATIVA -1

Lembrar-te é o despedir-me de pássaros no outono,
debruçado na ponte de ferro
que liga o teu abandono
ao meu berro.