31.10.08

seara


' é da magia tangível passear a mão subindo o áxis e o atlas passando a nuca e adormecer lentamente os dedos nos cabelos
ser o vento ao por do sol'

da poesia enquanto objecto poético

...

In the East poets are sometimes thrown in prison--a sort of compliment, since it suggests the author has done something at least as real as theft or rape or revolution. Here poets are allowed to publish anything at all--a sort of punishment in effect, prison without walls, without echoes, without palpable existence--shadow-realm of print, or of abstract thought--world without risk or eros.

...

excerpto do texto Pornography do livro "
The Temporary Autonomous Zone, Ontological Anarchy, Poetic Terrorism" por Hakim Bey, editado por Autonomedia

reencontros


Era apenas um reencontro mediado por uma mão pouco cheia de semanas. Férias de Verão imensamente intermináveis. A expectativa crescia a cada momento prolongando em séculos os minutos que teimavam em não passar. Antecipava os carinhos inigualáveis, as carícias de letras escritas nas costas, os ralhetes lambretas depois das tropelias de regras quebradas. Tudo era saudade tudo. Na demora cresceu uma angústia sofregamente alimentada por um medo incontrolável que ruíssem os pilares da Terra, que sucumbissem os meus alicerces que de sólidos tinham pouco ou nada. E foi com uma velocidade olímpica que corri enfim no seu vislumbre, palmeiras distorcidas de verde ramas coroando a passagem dos meus curtos cabelos esvoaçantes, desejando ser a primeira a deliciar-me com as suas envolventes expressões de amor. 

visto a capa negra dos estudantes, solene adriano na voz adorada, perguntando notícias ao vento que passa. devolve-me o teu beijo de brisa, hoje, ao acordar. o vento algo me diz.

30.10.08

revelaremos

Revelarei por fim involuntário e nu
O que em mim jamais ousei procurar
Ignorando que tu há muito me desnudaras
Por ser pertença tua tudo o que é pertença minha

Revelarás por fim involuntária e nua
O que em ti jamais ousaste procurar
Ignorando que eu há muito te desnudara
Por ser pertença minha tudo o que é pertença tua

big science


"Big Science" Álbum de Laurie Anderson

Houve um tempo em que me deixei fascinar pela metrópole. Esse tempo em que coincidente crescia, nem só de imagens e estórias sobre Nova Iorque o meu imaginário era povoado, mas também de sons. 

O meu pai trouxe dessa cidade slides e um vinil da Laurie Anderson chamado Big Science que continha uma música com o mesmo nome. Na minha cabeça, a conjugação dos arranha céus com a urbe em efervescência, com os uivos dos lobos não podia fazer mais sentido e sugeriu a minha mitologia da metrópole, que diga-se ainda hoje me acompanha e cada vez mais.

As cidades de ouro, povoadas de lobos a uivar que coabitam o cimento, o aço e o vidro, o órgão técnorgânico a ressoar, enquanto se desdobra cada esquina, e cada rua. O admirável mundo novo, todo de ouro, como o grande tesouro da humanidade. Aqueles lobos, ainda lhes sinto o respirar calmo. As longas filas de carros, os grandes sinais e cartazes, a grande utopia. As cidades douradas e os lobos povoados pelo som frio e quente de um órgão técnorgânico. A grande ciência, o rigor e a exactidão como aspiração, ao mesmo tempo a solidão.

http://www.laurieanderson.com/microsites/Big-Science/index.html

29.10.08

somos tu e eu filhos do deserto III

Nesse dia e para cada um dos nossos sentidos acharemos o que nos anestesia.


Os terramotos provocados pelas tuas mãos, nas minhas mãos, oferecerás ao vagabundo mais miserável, e eu também. 

O sabor delicodoce dos teus lábios ao morder os meus lábios, oferecerás à mais bela maçã que encontrares, e eu também.

O perfume irresistível do teu corpo que exalo enquanto nos abraçamos, disfarçarás com perfumes luxuosos que te tornam invisível na presença de outros indivíduos, para que eu me perca na globalização odorífera também.

A música das tuas palavras, que faz dançar pássaros no meu peito, perder-se-á no vendaval do quotidiano e a música das minhas palavras que criam ondas de prazer no teu corpo também.

A visão do teu semblante florido que ridiculariza o mais belo quadro esquecerei eu enquanto observar atentamente a tv, e tu também.

do sonho emana a realidade

Foto: Cristina Paixão


entra luz difusamente iluminando-me o rosto. perco a noção de espaço, tantas as paisagens que percorri. neblina diz-me que é o rio que despeja sobre mim o soar dos cruzeiros lentamente engolindo uma língua de cais. orgânicas erguem-se gruas salpicando de ferro pouco o ferro imenso que pulsa entre margens. um arrepio transpira dos poros sorrindo. realidade outrora sonho.

da passagem do tempo enquanto transformação da matéria




28.10.08

as melodias e as tágides IV


ó marinheiros corsários pescadores
esta noite fui ao vosso encontro
descendo o rio até aos oceanos
esta noite fui ao vosso encontro
e vós ao meu encontro navegando sobre mim
sou o atlântico
sou o índico
sou o pacífico

esta noite sou a asa do albatroz que vos guia
sou a barbatana do tubarão que vos assusta
sou o banco de areia que vos encalha
sou o mar revolto que vos engole

esta noite desci ao rio
pela manhã evaporo-me
pela manhã evaporo-me
de manhã sou pano nas vossas velas
sou madeira nas vossas proas
sou os ponteiros das vossas bússolas
de manhã sou o sol que vos alumia
sou o sol que vos alumia

à noite as tágides são as vossas estrelas

cantando a melodia dos enamorados
cantando a melodia dos apaixonados
cantando a melodia dos amantes
cantando a minha melodia
cantando a minha melodia

somos tu e eu filhos do deserto II




Enquanto mergulhas lenta nos meus olhos, a noite corre lesta em busca do mensageiro do sonho, que irrompe como um tornado nas tuas pestanas e com fúria redobrada provoca mares revoltos na tua íris que expande e contrai, que expande e contraí até ser um ponto minúsculo onde todos os acontecimentos, até o mais ínfimo se tornam gigantescos. 

Esse foi o dia em que decidimos abandonar a nossa causa e cada um sonhou viver a sua solidão. No dia em que as nuvens toldaram o nosso cérebro e passámos a calcorrear florestas alheias para não sentir saudades, embriagando os sentidos com o néctar do esquecimento. 

Nesse dia e para cada um dos nossos sentidos acharemos o que nos anestesia. 

dos amigos enquanto tratadores de alma


O amar que me extorquiste sugou-me a vida

[Centro-me em ti. Concentro-me. Perscruto aspirações enubladas de percepções minhas. Sinais contraditórios. Centro-me em ti. Venço desafios ao nanossegundo. Concentro-me. Perpetuo a longa hipérbole anacrónica. Arriscas a reciprocidade. Mas se: Centro-me em ti. Concentro-me. Centro-me. Concentro-me. Que restará então de mim senão tu próprio?]

A vós pois, tratadores de alma, cresce alegria no quintal

do carvão



27.10.08

do sentimento de liberdade enquanto objecto poético


'mindelo largo junto à avenida amílcar cabral tarde de verão'

sobre algo

Calma ou inquietude? Um único estado de espírito. Revejo-me vagueando volto atrás refaço. Contemplo a cidade, a contração, a distenção, outra cidade um compromisso. Viajo e medito, sei que algures o meu rosto se repete nas faces das pessoas que encontro. Quero esquecer que sei, quero esquecer que se repete, mas repete. É tão evidente, está impresso no movimento dos nossos intestinos. Procuro mas não encontro, qualquer barreira, qualquer fronteira me impede. Sei quando o vento por mim atravessa e quando devo estacar. Se pudesse limitar-me-ia a deixar ir. Porém, quando da natureza um calafrio, violento-me. Nunca... nunca serei mais que eu mesmo. Caro companheiro 

segunda forma

Acontece que sou esquivo como o vento que passa embora correr não me permita.
Escorre um fluido água pela janela. Canta um pássaro faca. Ritmo de rodas veículo. A pressão de um encosto arrepio. 
Quem sabe? Cortesia de um carteiro bomba. 

saudades da infância
meu amor

para r.



Um vagabundo sussurra. Esse vagabundo sussurra mas nenhum outro escuta o murmúrio da água escaldante nas areias do deserto. A pacífica sirene ecoa através do tempo e do espaço interiores, intravenosa serpenteia, depressiva, imensa de cores berrantes e efeitos doppler, como cartas lançadas ao ar, como punhais atravessando a carne tenra de um sonho.

Liberto um vagabundo grita. Esse vagabundo que cai e se levanta, que prostrado corre ao saber-se afinal preso noutra realidade, noutra pele sedosa e foto sensível que transmite luz no seu espectro máximo. Esse é o lugar preciso.

Um vagabundo passeia-se no teu corpo. Esse vagabundo que se esquiva gracioso das palavras mísseis que envias para um mundo que te quer submissa. Já não reinas solitária no reinado do teu corpo. Estás agora indiscutível nos seus braços. Eu esse vagabundo, já não só, nem algemado, mas amarrado firmemente às tuas raízes, orgulho-me de te ver crescer, no jardim que teimo em regar tão poucas vezes.  

Errática, sublime e exuberante esta é canção que sussurro.

promontório


Owls at Noon. Chris Marker.

mergulho mais uma vez. correm gotas demorando-se, adoçam-me o corpo espírito em evasão. procuro por entre as algas as realidades esvaídas, da luz protuberante refractada, múltiplas dos mesmos factos. recombinam-se em séries antagonicamente iguais. desfolho a pele chegando ao músculo, lentamente enrolando finas camadas que esfumaço. angústia espraia na dissecação eminente. bisturi rasga em precisão o ponto de não retorno, fio quente que se paralisa no vácuo dessa caverna. contemplo a desintegração, já do alto do meu promontório.

da lua enquanto objecto poético


26.10.08

somos tu e eu filhos do deserto I


Voa se o espelho te devolve as asas para voar. Mergulha se o joelho ao tocar uma coxa te envolve num mar de carícias. E se o rosto distorcido pelas lágrimas afogar momentos deslumbrantes, a mão a descer pelos seios floridos continuará a espairecer o cérebro na direcção do firmamento.


Somos tu e eu filhos do deserto a correr com os homens e as serpentes, à sombra das macieiras. Encontramos o ardor do sol, escondido nos recantos húmidos do oásis verdejante, onde fazemos amor e criamos pássaros de fogo, que lambem suavemente as folhas das tuas árvores, que se afogam na candura do teu rosto, que se atiçam na solidez dos meus braços, que se transformam em pó na trajectória do nosso olhar.

Somos tu e eu deuses pagãos na nossa própria religião onde raramente vislubramos um sorriso desconhecido. Somos tu e eu a esperança de milhões de anos luz que atravessam o universo inteiro para nos prestar vassalagem. Somos tu e eu um sorriso flamejante num peito nu ferido pela lança dos conquistadores do novo mundo.

as melodias e as tágides III



ó mar salgado quanto do teu sal
é esperma do meu sexo
quanto do teu sal
é fluido das minhas tágides
quanto do teu sal
é suor é lágrimas é amor dos nossos corpos
ou das nossas formas que eu perdi a carne do meu corpo

ó mar salgado quantas das tuas vagas
quantas das tuas conchas
quantas das tuas algas
quantos dos teus peixes

são filhos dos nossos beijos
são filhos das nossas mãos
são filhos dos nossos sexos
são filhos do nosso amor

eu e as tágides caminhámos por sobre as águas
eu e as tágides ressuscitámos o morto lázaro de meu nome
eu e as tágides abrimos os olhos ao mar e fechámos os olhos às margens
eu e as tágides erguemos a primeira pedra e pecámos a noite toda
eu e as tágides dormimos já não sei quantas outras noites no deserto
eu e as tágides somos crucificados todos os dias no alto mar

25.10.08

ausências

Da janela  vejo sempre um galo no cimo de uma torre. De noite está ligeiramente iluminado. Acho triste nunca ouvir o seu cantar. Se calhar vivo numa cidade.

24.10.08

da luz enquanto objecto poético

famous blue raincoat disorder


"Songs of Love and Hate" Álbum de Leonard Cohen e "Unknown Pleasures" Álbum de Joy Division 

Estive à espera e procurava um mentor procurava tímido. 

Numa cidade sem nome despedaçado pela angústia restam os meus restos. Mas nem sempre foi assim. Em tempos fui salvo, levado pela tua mão sem esperares nada em troca. Eu que precisava de extravasar a energia de biliões de estrelas raivosas contidas na minha agreste armadura espinhosa como uma sólida solidão fundida na fornalha dos feitos e dos defeitos. 

Tu compreendeste, incitaste, incendiaste algo que não sabia existir dentro de mim. 

Nunca poderei retribuir o que por mim fizeste da mesma forma, apenas subtilmente por vias transversas, por caminhos obscuros, por ruelas estreitas, deitando o orgulho por terra e aceitando submisso o traçado do amor proibido. Mas que poderei fazer quando se escolhem caminhos excêntricos e se desfazem pontes sem lançar âncoras. Gostaria de ter feito algo por ti, levar-te pelo caminho certo. 

Delineados pela sombra desfigurada os argumentos irrefutáveis de todos os actos como meros reflexos do medo. 

Desta impotência lúcida resta apenas a separação sem falsos remorsos nem despedidas dolorosas. 

Agora, depois de tantas mulheres de beijos voláteis e sexo ardente, e da morte anunciada do amor e da paixão. Tenho saudades desses momentos em que estávamos. Sem falsas questões interpostas, simplesmente fumando um cigarro, ou bebendo uma cerveja, às quatro da manhã numa rua qualquer de um lugar qualquer.

as melodias e as tágides II


voei esta noite nas asas das tágides
nadei o rio o oceano
nadei as águas nas minhas águas noivas
nadei as noivas das minhas águas e do meu corpo
nesta noite em que não sei o que fiz aos meus olhos

abri ao mar o meu corpo
perdi-me no mar com o meu corpo
e vi-me no mar sem o meu corpo

encontrei no fundo do mar a nova forma do meu corpo
e tanto os meus pés

como as minhas pernas
como os meus braços
como as minhas mãos
como os meus dedos
como as minhas unhas

e os olhos a íris a retina
as pálpebras e as pestanas

tanto a minha voz como a minha boca
tanto os meus lábios como os meus dentes
tanto a minha língua como a minha garganta

enfim inteiramente todo o meu ser
corpo e não corpo

na vida das minhas vidas das minhas águas das minhas noivas
das minhas tágides dos seus cabelos das suas escamas
dos seus olhares dos seus seios da sua pele

enfim inteiramente todo o seu ser
corpo e não corpo

a minha cabeça que não sabe se existe
que não sabe se dormia se vivia se sonhava
se fazia tudo em simultâneo
juntos em simultâneo e as tágides
tantas quantas pude conceber

e agora estou noivo dos oceanos
estou noivo das águas que vieram ao meu encontro subindo o rio
descendo ao leito de sal que é o Tejo
descendo à luxúria de sal que é o Tejo

from beyond


unknown 


driven intensity by the intensity on the back of your eyes 
glaring intensity provoked by the outraging forces blowing inside 
swells your body to the limits of exhaustion 
annihilates atomically whatever stays behind 
the toxic disposal feels like the ether you smelled lying there rigidly already in an afterlife 
the cosmic rays saying sometimes you may wonder and pass by 
one million bombarded kissing particles wishfully thy

23.10.08

horses



"Horses" Álbum  de Patti Smith, fotografia de Robert Mapplethorpe

A noite galopa vertical. Sigo o luar, os meus olhos berlindes multicoloridos, que mimetizam o reflexo das luzes néon de móteis baratos à beira de uma estrada qualquer.

Rígido o cérebro debita informação directamente ao motor deste carro, que rosna ferido de impaciência. E a estrada desaparece, a cada curva, a cada segundo.

Cada colina na penumbra lembra os teus seios, e as planícies na noite solitária, iluminadas pelos potentes faróis, são meros reflexos dos meus dedos no teu corpo.

Ainda hei-de morrer pelos teus pecados, hum vais ver como sabe tão bem.

Pelo tubo de escape a música solta-se nervosa, Patti Smith cavalga selvagem, Rimbaud atira a cabeça contra as paredes. Nada impede o trajecto em linha recta, cruzando o traço contínuo entre o crepúsculo e o amanhecer. O reencontro paira horizontal.

A música solta-se cada vez mais alto, Rimbaud desfigurado permanece agora quieto caído a um canto, exausto. Insensível um pensamento martela obliterando os sons que atravessam a atmosfera. E no vasto espaço negro uma melodia mesclada irrompe dos lábios cerrados, um sussurro repetido. Estou a chegar amor, falta apenas um ciclo solar, atravessado por uma noite de retalhos.

De olhos vazios estarei aí outra vez meu amor.

Ainda hei-de morrer pelos teus pecados, hum vais ver como sabe tão bem.

primeira forma

De uma janela vidro partido o olho partícula incha. Descrever é limitar - dirias tu - até que de um só movimento traças a cor rasgo paisagem um novo mundo. Na realidade sou carne nome um rosto bem parecido. 

efémeras

Porque não podia deixar de fazer uma referência a um evento que me surpreendeu muito, especialmente pelo movimento perpétuo, pouco comum a um espectáculo de teatro. ACONSELHO. Quanto à temática deixo também uma possível leitura pessoal embora anterior à peça.


http://www.animaseapresenta.blogspot.com/

Passada a penumbra amanhece o olhar seco com renovado interesse no belo e na vida e o horror soçobra em todas as coisas. A transição ocorre sempre que um segundo passa, deixando para trás nada mais do que marcas indeléveis na subjectividade humana, que teima em agarrar-se, teimosa e crente. Cada instante se desdobra num sentido único e intransmissível de todas as coisas efémeras do belo e da vida.

Não serão as efémeras impressões que impulsionam ao sonho milhares de vidas, para lá das vidas objectivas, para lá das vidas despojadas? Os pequenos segredos que descodificam o belo que há em tudo o que nos rodeia, nos extasia.

Embrenhado e sempre alerta aos sinais transparentes que evocam o amor, que evocam o desconhecido, e os elevam até às alturas, perante mim o efémero que glorifico como condição ao sonho e à vida.

reinvenções




Na manhã seguinte, frente ao espelho na casa de banho, sistemático analisas cada centímetro de vidro prateado e cada centímetro de pele em busca da imagem do dia anterior. 

A metamorfose instalou-se em cada poro de pele e por toda a parte explosões subcutâneas alteram a geografia da carne. Colinas são substituidas por planícies abruptamente enquanto subtilmente jorros de napalm liquidificam as impressões digitais dos dedos. 

A água escorre da cara para o lavatório para o ralo e já não percorre as linhas de identidade das mãos. As formas líquidas que se desenhavam no corpo deram lugar a uma enxurrada implacável que como um turbilhão limpa os últimos traços originais. 

Cada dia que passa dá passagem a uma nova criatura e todos os dias uma nova personagem sem identidade sem cultura sem raízes sem história sem futuro reinventada, inocente.

22.10.08

o peso das lágrimas

deslizando como pérolas cintilantes no fundo da fossa das marianas

as melodias e as tágides I


acordei de manhã na travessia do Tejo
tanta a humidade os poros da minha pele furnas
o meu corpo água que ferve
ferve o meu corpo nas águas do Tejo
é levado o meu corpo nas águas do Tejo

na branca espuma do mar
branco branco branco é a cor do mar
neblina branca branca de lençóis de linho
e vou ao encontro do mar descendo o rio
e vêm ao meu encontro subindo ao rio
as tágides
as tágides

é incerto que tenha acordado esta manhã
pois não fechei os olhos toda a noite
fechei os olhos à noite
e a noite foi verdadeira

certamente acordei esta manhã
pois toda a noite sonhei este encontro
até ao mar descendo o rio

verdadeira a noite
nos braços das tágides
verdadeira a noite
nas guelras das tágides
verdadeira a noite
à superfície das águas
verdadeira a noite
à profundidade das águas

pedras solúveis


My Little Arsonist. Charlie Siebert

vagueio errante no teu suor presa à vida por um fio

sou um ser mutante clonado pelo momento acabado de passar

a busca da ordem cria entropia que te é distante

julgo impossível o sentimento amputado precocemente

rasga-me a alma o choque da eventualidade

lágrimas correm incontroláveis escoam-se no fumo do tempo

do prazer de vagabundear

Hoje não fiz o percurso directo, do trabalho para casa. Longe disso, deixei-me rolar por locais desta cidade onde fui e onde serei. 

Do passado projectei o futuro destas ruas, destes prédios e destas árvores no meu quotidiano. E ainda não foi esta tarde que choveu, mas quando os salpicos de chuva lhes puxarem o brilho estarei outra vez a fazer o passeio transviado à minha rotina. 

Até lá contínuo a minha vida como se nada fosse. Adoro Lisboa.

21.10.08

passagens



A força do beijo apaixonado como a planura do olho da tempestade, deixa-te à mercê dos meus dedos. Como o encontro obtuso de uma gargalhada e o doce som da tua voz, no qual me deixo possuir pelo teu NÃO e sigo o caminho divagando para lá da noite, para lá do simulacro.

Diz-me que sabes do que falo.

Os seres estranhos não seguem essa passagem, seguem a estrada mais sinuosa. A estrada de diferentes formas opacas, entre uma planície erótica e o teu toque. Mas eu já não sou de rocha, nem os teus sonhos de algodão. E os teus lábios entreabertos ao meu despertar, e as tuas coxas que cedem ao meu olhar.

Este é o meu poema para ti a paixão que se esconde.

O sucesso depende apenas de um olhar, de uma canção que se esvai. E o passado que não morre, e a saudade que não se espraia nas tuas costas, suavemente.

Este é o meu lamento para ti a sensação que se escoa.

da textura pictórica da arquitectura enquanto objecto poético


'londres entre shoreditch e whitechapel tarde de inverno'

20.10.08

salas de espera




Acontece apenas na mente, o sopro do descontentamento. 

A vigília ainda te queima o caminhar, solto e leve que terias, que terás se libertares a vida que julgas ainda estar errando em salas de espera. 

O corpo não mais é que uma extensão de luz. 

Com uma furiosa exactidão, continuarão a existir sonhos feitos de salas de espera. Tudo se justifica em si, para si. Tudo será tudo o que quiseres. Sonhos intersectarão a vida em todos os sentidos como fogos de artifício, de cor e luz como afinal sempre existiram. 

Um dia saberás chegado o dia.

water box


Poh Ling Yeow. Forgotten.

concentro-me nas palavras idas fragmentos do tempo recente

abstraio-me do sabor amargo embrenhado no tempo presente doutros espaços viverei

freneticamente procurando o sorriso nas letras que flutuam desfalecem

revolvo-me em entranhas minhas avidez ansiedade melancolia

80% H2O, piscina interior na qual me afogo naufrágio esquecido

:

oceano interior confluência das águas

das chuvas dos suores e das lágrimas

inolvidável naufrágio irremediável

fragmento de dilúvio interno

depois disto

a fossa das marianas deixou de ter segredos

é agora tão tangível como o teu pescoço

cedo cairei na profundidade desse corpo

'extensão de poema por Paulo Bernardino Ribeiro'

do desassossego da realidade II


Com a consciência vandalizada
Pela presença do despertador 

Espremo o sonho numa gota
Enquanto o corpo é tragado pela luz 

Na ausência do equilíbrio flexível
Em vão atraio a palavra aos lábios 

19.10.08

da análise comportamental de personagens da sociedade enquanto objecto poético


'madrid plaza del ángel manhã de domingo outono'

18.10.08

do desassossego da realidade


Em contra mão

No cansaço muscular
Da omnipresente dor de dentes
Pálpebras erguidas
Corpo noite branca

Sôfrego
Procuro a intercepção
Do olhar exausto com a palavra muda

conversa sobre a relevância das relações


different life shades captured in just one click says:

relantionships float around moments in time and space

uma pequena reflexão sobre o teu encontro

e com o meu estado actual de consciência relacional

apenas um apontamento

para te dizer o que sinto

relativamente às relações de amizade

relantionships float around moments in time and space says:

todas elas

as relações

different life shades captured in just one click says:

de certa maneira sim

mas há relações para lá desse espectro

relantionships float around moments in time and space says:

o espectro temporal e a profundidade desse espectro pode variar

different life shades captured in just one click says:

claro que sim

relantionships float around moments in time and space says:

mas é sempre um espaço e um tempo

different life shades captured in just one click says:

mas a tendência é para a diminuição da profundidade e para a diminuição temporal

relantionships float around moments in time and space says:

sem dúvida

neste tempo

neste espaço

different life shades captured in just one click says:

o que quero dizer

é que em face

(para lá do que afirmei)

de constrangimentos espaciais e temporais

poucas relações se mantêm especiais

relantionships float around moments in time and space says:

nós somos o objecto relacional confinados a um tempo e a um espaço

different life shades captured in just one click says:

dentro do leque de relações que tens

resta ainda menos vontade

de manter relacionamentos desinteressantes

relantionships float around moments in time and space says:

sem dúvida

different life shades captured in just one click says:

e quase se torna opressivo

estar a "contragosto" com pessoas que por alguma razão se cruzaram comigo

relantionships float around moments in time and space says:

mas o que me surpreendeu positivamente

e considerando o que acabaste de dizer

foi a tua predisponibilidade

para encetar novos relacionamentos

num mesmo espaço

num tempo diferente

different life shades captured in just one click says:

mas tens de manter as tuas opções em aberto

relantionships float around moments in time and space says:

vi-te e vejo-te com uma alma nova

different life shades captured in just one click says:

e no meio de 10-15 pessoas novas

relantionships float around moments in time and space says:

com ideias a fervilhar

different life shades captured in just one click says:

há-de haver algumas que nos levam para outros patamares de consciência

relantionships float around moments in time and space says:

para lá disso

há factos relacionais

que abrem a possibilidade

de uma nova temática poética

quanto mais não seja

a análise comportamental de personagens da sociedade

different life shades captured in just one click says:

eu diria que abre caminho a novas ideias sobre as temáticas poéticas

relantionships float around moments in time and space says:

é isso

different life shades captured in just one click says:

pelo menos no meu caso

em que as questões relacionais sempre estiveram de alguma forma presentes

relantionships float around moments in time and space says:

sempre estiveram presentes

mas de uma forma bastante personalizada

pela intensidade dos objectos relacionais em questão

a minha temática relacional é muito especifica

é sempre a mesma conversa

o mesmo poema escrito de maneira diferente

os mesmos objectos

different life shades captured in just one click says:

não é sempre o mesmo objecto

relantionships float around moments in time and space says:

com honrosas excepções

aquele poema que li

é diferente

é um olhar de fora

mas são poucos

os poemas assim

são mais dificeis

different life shades captured in just one click says:

em princípio são mais difíceis

mas se treinares isso

deixam de ser

relantionships float around moments in time and space says:

não se trata de treino

acho eu

different life shades captured in just one click says:

achas que não?

relantionships float around moments in time and space says:

trata-se de encontrar a envolvente certa

different life shades captured in just one click says:

se existe predisposição

para explorar isso

e se meteres na cabeça que é por aí

então acho que o resto é treino

relantionships float around moments in time and space says:

o defeito (meu)

é que é mais fácil e cómodo falar de nós próprios

do que conjecturar relatar

o alheio

different life shades captured in just one click says:

sim

mas o que relatas

também de certa maneira é reflectido no alheio

relantionships float around moments in time and space says:

como assim?

quando não falo de mim

é claro que relato o alheio

different life shades captured in just one click says:

isso é o que gosto na poesia

é que é a linguagem mais aberta de todas

e nesse sentido

as tuas problemáticas

têm repercussões no alheio

relantionships float around moments in time and space says:

mas essa é uma linguagem muito tua

criares "personagens" que não passam de alter-egos

mesmo que seja num pequeno poema

different life shades captured in just one click says:

não no sentido de impores ao alheio

mas no sentido de o alheio se apropriar delas

e torná-las "universais"

relantionships float around moments in time and space says:

sim

mas aí temos processos de escrita diferentes

eu quando relato factos vividos

quando falo da realidade

falo na primeira pessoa

sou  eu

para o bem e o mal

different life shades captured in just one click says:

mas eu também escrevo na primeira pessoa

pelo menos de vez em quando

sou eu

para o bem e para o mal

relantionships float around moments in time and space says:

mas tu é muito mais do geral para o particular

different life shades captured in just one click says:

mas um eu imaginário

relantionships float around moments in time and space says:

e eu é mais do particular para o geral

different life shades captured in just one click says:

nós temos abordagens muito diferentes

relantionships float around moments in time and space says:

eu imaginário=alter-ego

eu não uso muito alter-egos

salvo honrosas excepções