há uma cidade maravilhosa ao fim da tarde
agora que os dias crescem de luz e nevoeiro
Lisboa
e há em Lisboa uma rua uma calçada
como quem desce da graça em direcção a santa apolónia
a calçada do cardeal
e há nessa calçada uma pequena tasca
deserta a horas mortas que são as minhas horas
e tu que nunca mais chegas
e as minhas horas mortas
e o meu peito cheio de vida esperando a tua vida
não desci a santa apolónia
para te ver sair de um comboio
pois chegaste ate mim mas não foi por terra
não desci ao Tejo
para te ver sair de um navio
pois chegaste ate mim mas não foi por mar
chegaste é tudo
chegaste no primeiro dia de um mês novo
de um ano novo de uma vida nova
que seria sempre um dia novo de um mês novo
de um ano novo por me trazer vida nova
chegaste como quem sempre esteve
e reconheço a pequena tasca da calçada do cardeal
em frente a tua casa
como um espaço mágico de um tempo mágico
em que estás sem ter chegado
em que chegas sem te ausentares
há uma doença benigna na minha memória sempre que estás
(e estás mesmo antes de chegar)
e cada minuto de abraçar o teu ar
cada minuto de respirar o teu braço
e cada minuto de pressentir o teu corpo
cada minuto de possuir o teu espírito
esqueço dias de meses anteriores
de anos anteriores de vidas anteriores
das minhas e das tuas
horas vidas recantos lugares memórias
esqueço a vida os tempos e os espaços
cada minuto da tua presença
faz-me esquecer um dia da tua ausência
em breve não saberei quem sou
só tu existes
nessa calçada
nessa cidade
neste homem
'atocha' pintura de António Lopez-Garcia
esta é uma outra cidade.
mas as cidades são todas iguais.