13.12.08

da ausência


‘Encostou a mão ao corrimão de pedra e desceu os dois lances de escadas até atingir o átrio do prédio. Eram as últimas horas do dia e Rafael saía de casa como quem sai de manhã para o trabalho. Mas Rafael não ia trabalhar. O trabalho e ele há muito que se ignoravam mutuamente.
Rafael que em tempos tinha sido apontado pela crítica especializada como um dos mais promissores compositores da sua geração, via agora o trabalho, e a música era agora um trabalho, como um fardo demasiado pesado para a sua cabeça poder suportar.
Pelas ruas à noite a sua silhueta surgia como a de um louco, como a de um pobre diabo. O seu passo era apressado, como o de quem não quer perder um transporte ou como o de quem não quer chegar atrasado a um qualquer encontro. E ao tomar consciência, num rasgo de lucidez, de que o seu transporte há muito o perdera e que os encontros a horas certas já não faziam parte da sua vida sem regras, Rafael abrandava o passo e quase parava, caminhando vagarosamente. Era assim Rafael andando pela cidade. Porém naquela noite sabia onde ia e manteve constante o passo.
Saiu do prédio desceu a rua em direcção à Praça da Figueira e desapareceu da superfície da terra.
Àquela hora as estações do metro são o lado errado. O lado errante. A multidão das horas de ponta, recolheu. Apenas os loucos, os errantes, os solitários conhecem a desolação dos túneis nas entranhas da cidade. Apenas estes conhecem o outro lado.
A estação da Baixa-Chiado estava muda, uma pessoa esperava o metro, uma mulher, à sua frente do outro lado da linha dois homens. O sinfonia do ruído do metro substituiu o silêncio da estação.

Os dois homens do outro lado continuaram imóveis. A mulher entrou. Atrás dela uma sombra de homem entrou também.

Os olhos revirados e o pescoço erguido, erecto com uma cabeça cambaleante. Era essa a figura de Rafael. Os ruídos excessivos das cidades, das máquinas, do progresso, alteravam-no. E quem visse Rafael, agora uma sombra de homem, arrastar o corpo pelas carruagens do metro dançando como um esqueleto, abanando o corpo lentamente veria somente um espectro, a imagem fantástica de uma pessoa ausente do mundo.'

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