'Frente a frente íamos os dois, e o olhar nervoso daquele homem cruzava o meu. Seduzia-me com a sua aflição. Inquietava-me. Olhava-me, depois desviava o olhar, tremia. Estava nervoso, muito nervoso.
E eu deixo-me envolver facilmente, olhava-o receosa, mas não podia deixar fugir o olhar para qualquer outro sítio. E os olhos daquele homem cruzavam os meus. Se me apertasse e me beijasse eu seria impotente perante o seu suplício. Acho mesmo que se me pedisse para o beijar, eu me levantaria e o beijava, por compaixão. Mas foi ele a levantar-se, não para me beijar, como naquele instante pensei que o fizesse, pois os seus nervos eram nervos de amor. E eu ainda acredito em paixões nascidas de um olhar numa carruagem de comboio.
Dirigiu-se para a janela guiado pelo sonambulismo do seu corpo. O homem estava hipnotizado e eu também! Só de o olhar! Colou a face ao vidro e assim ficou durante algum tempo, não sei quanto, estava hipnotizada pela sua figura. Não tenho presente que mais alguém estivesse naquele compartimento, pelo menos não recordo mais ninguém. Éramos apenas os dois. E um silêncio entre nós. Não trocámos uma só palavra. Nem sei se estaríamos realmente ali. Agora só recordo o matraquear dos carris. O irritante zumbido iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii e o tu-tu tu-tu-tu, aquela sinfonia do desespero. Como eu estava desesperada! Que quadro desolador! Eu olhava aquela sombra de homem agarrada às vidraças. O homem olhava, o quê, não sei, nem com que olhos. Ele estava de costas, mas em algum momento se virou, pois fixei no meu espírito aquele rosto crispado de olhos revirados e a cabeça cambaleante…os olhos revirados com se de um morto se tratasse! A sombra ergueu os braços e num esforço levantou a vidraça. Iiiiiiiiiiiiiiii tu-tu-tu!
Se estava frio este quadro, mais frio ficou agora. Os meus ossos gelaram. O meu corpo tinha arrepios, a minha alma tinha arrepios, toda eu era um arrepio. Um arrepio é isso aquele espectro à minha frente era, um arrepio!
Iiiiiiiiiiiiiiii tu-tu-tu iiiiiiiiiiiii tu-tu-tu !
Duas estátuas de jardim abandonadas à chuva no Inverno. Assim éramos nós, imóveis. Eu, de pé agarrada à maçaneta da porta do compartimento espreitando para fora, olhando-o. Ele, apoiado com os braços e o peito na parte inferior da vidraça. As abas do seu casaco levantadas e as pernas quase como que quebradas, davam a impressão daquele homem, não ser um homem. Era uma sombra. Colado à vidraça era uma lapa. Abraçado à janela era uma lesma.
O tempo era agora imenso. Não sei quanto tempo durou esta visão, quanto tempo passou desde que o comboio deixou a estação. Perdi a noção. Fiquei hipnotizada. Sim, fiquei hipnotizada por aquele homem.
A certa altura o comboio abrandou, os travões chiaram, parecia que iríamos parar, mas não, a sombra acercou-se da janela por inteiro, a velocidade aumentou novamente. A cabeça, os braços e o tronco iam já do lado de fora. Iiiiiiiiiiiiiiii tu-tu-tu iiiiiii tu-tu tu-tu iiiiiiiiiiiii tu-tu-tu ! Foi a última visão que tive daquele homem.'