3.11.08

podia ter sido

Podia ter sido o meu país. A racha do grand canyon coberta de escombros, o monte rushmore grafitado com cores berrantes e palavras obscenas e o fim dos hamburguers e das batatas fritas.

Podia ter sido o meu país mas foi o teu. Os budas caíram e lentamente desapareceram nas camadas de entulho provocadas pelas explosões, e de tanto cansaço já não se querem levantar. Os acampamentos que criam novas geografias sempre que uma nova guerra começa e se prolongam até onde a vista alcança. Os escombros das cidades que já não têm nome, onde cidadãos estropiados se passeiam em busca de um pedaço de comida. Os invernos rigorosos e as montanhas geladas que mantêm o estômago faminto e os teus pés frios o ano inteiro. Os abutres e os B'52 alimentando-se dos restos de civilização, provocando erupções magmáticas, raiva na escuridão perturbada, e as minas ainda activas, mas quietas à espera da sua oportunidade gloriosa.

Podia ter sido a minha cidade. O desaparecimento dos nomes e números das avenidas soterradas no pó, os automóveis tipo anos 40 e as lojas vazias de produtos de primeira necessidade e as árvores podres despidas com os ramos pendentes.

Podia ter sido a minha cidade mas foi a tua. Os corpos podres balançando ao sabor do vento norte em campos de futebol. Os cinemas fechados, onde a propaganda política deixou de existir. As lojas onde os bens de primeira necessidade são metralhadoras kalashnikov modelo russo em segunda mão. E os automóveis todos da mesma cor cinza poeira. As barbas mal escamoteadas em sinal de um protesto qualquer na única barbearia unisexo dessa cidade. A iluminação desligada e a noite invadida por rastos de fogo e por toda a parte espelhos quebrados.

Podia ter sido eu. Primeiro a execução e só depois o julgamento, o amor proibido na rua banhada de vento, o terror nos olhos ao virar da esquina. A cabeça decepada.

Podia ter sido eu mas foste tu. O olhar vago focado no céu, sem saber se a dádiva dos deuses prolonga o sofrimento ou oferece o descanso eterno. O amor proibido ao virar da esquina e o terror nos olhos velados, sempre todos os dias. A sexualidade decepada e os frágeis pés calcorreando caminhos de silvas.

Apenas a vergonhosa sensação de impotência, apenas a impotente sensação de vergonha.

Podia ter sido o meu país, mas acabou por ser o nosso amor.

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